Quando estamos no Ensino Fundamental, aprendemos nas aulas de português que uma história pode ser contada de diversas formas. Estudamos os tipos de narradores que existem e que podem ser usados. Em geral, os professores nos ensinam que há, basicamente, dois tipos deles:
1. O narrador em primeira pessoa (eu), que é aquele que, além de contar a história, também participa dela, e que pode ou não ser um personagem principal. Ele sempre vai narrar a história do ponto de vista dele, contando sobre como ele percebeu os acontecimentos e as pessoas ao seu redor;
2. O narrador em terceira pessoa (ele/ela), que é aquele que não está participando da história, e pode ou não ser onisciente (aquele que sabe todas as coisas). O narrador onisciente, por exemplo, pode ser neutro, apenas relatando as coisas que acontecem, ou pode também ser seletivo, pois, além de narrar a história, atreve-se a dar suas próprias opiniões sobre as atitudes, emoções ou pensamentos dos personagens, e isso pode até mesmo influenciar o julgamento do leitor sobre os envolvidos na trama.
Esses dois tipos de narração já foram abordados no nosso blog anteriormente e você pode encontrá-los
neste link aqui.
Infelizmente, não são muitas pessoas que são apresentadas ao “universo” das histórias que são contadas em segunda pessoa (tu/você). Lembrando que, embora “você” seja um pronome considerado da terceira pessoa, hoje em dia usamos para nos referir à segunda pessoa também.
Este não foi um problema pelo qual somente eu passei durante os tempos de escola. Várias pessoas também não conhecem nada ou muito pouco sobre o assunto, sem contar que os livros com esse tipo de escrita são extremamente reduzidos perto dos que são publicados em primeira ou terceira pessoa.
Nas histórias narradas em segunda pessoa, é como se o narrador estivesse dialogando com o leitor. Certo, isso até uma história escrita em primeira pessoa pode fazer. Portanto, mais que apenas dialogar com o leitor, é como se o narrador estivesse narrando uma história sobre você, para você mesmo.
Opa, mas espera um pouco, tia Helen. Então você está dizendo que as histórias narradas em segunda pessoa não possuem um personagem principal fixo, pois esse personagem sempre vai acabar sendo quem está lendo a história? Isso é a coisa mais surreal que eu já vi na minha vida!
Não, não é bem assim que a coisa funciona. O escritor da história vai apresentar, sim, um protagonista específico, com nome, características próprias e tudo que ele tiver direito. E ele apresentará tudo isso dentro da história. O que estará acontecendo é que, como a narrativa estará em segunda pessoa, você, enquanto lê, assumirá passivamente o papel daquele personagem. Será como se você estivesse na pele dele.
Okay, tia Helen, ainda não entendi nada. Você poderia dar alguns exemplos práticos?
Claro que sim, pequena criança. Para quem não está acostumado, pode parecer uma coisa de outro mundo, mas, muito pelo contrário, é um tipo de narrativa que está inserida em vários contextos. Vejamos alguns deles:
• Nas letras de músicas
Let Her Go, do cantor Passenger, é escrita em segunda pessoa. Leia o refrão e a estrofe abaixo, que estão traduzidos da música original em inglês:
“Bem, você só precisa da luz quando está escurecendo,
Só sente falta do sol quando começa a nevar,
Só sabe que a ama quando a deixa ir.
Só sabe que tem estado bem quando se sente mal
Só odeia a estrada quando sente saudade de casa
Só sabe que a ama quando a deixa ir
E você a deixou ir.”
“Olhando para o fundo do seu copo,
Esperando que um dia você faça um sonho durar,
Porque sonhos chegam devagar e se vão muito rápido.
Você a vê quando fecha seus olhos,
Talvez um dia você entenda por que
Tudo o que você toca certamente, morre.”
Veja que aqui temos uma situação genérica, pois o compositor não cita nomes. Ele não conta na letra da música com quem é que está acontecendo a situação. Mas ele te faz pensar que tudo isso poderia estar acontecendo com você, certo? E isso, querendo ou não, cria em nós uma certa empatia com o que está sendo apresentado diante de nossos olhos. Sentimos como se estivéssemos vivendo a história na nossa própria pele. A gente se imagina lá, olhando para o fundo de um copo, pensando que todas as coisas nas quais nos envolvemos não dá certo. E que, realmente, a gente só percebe que ama alguém depois que perde.
Percebemos as coisas de maneira mais real, mais profunda, coisa que, nem sempre, um texto escrito em primeira ou terceira pessoa poderia nos fazer sentir. Pode ser uma situação que o Passenger viveu? Sim, sem dúvidas. Mas ele, em sua escrita, nos transporta como protagonistas para aquela situação, e é como se ele estivesse contando um fato que está acontecendo conosco.
• Nos livros
Pois é, amiguinho. Se você pensa que esse negócio de escrever em segunda pessoa é coisa de escritor de fanfic ou de gente não muito conhecida no meio literário você está redondamente enganado. O escritor mexicano Carlos Fuentes, que possui diversas obras e também foi um grande admirador de Machado de Assis, escreveu, no ano de 1962, um conto narrado em segunda pessoa chamado Aura. Segue-se um pequeno trecho da história, que, prometo, não compromete em nada a sua leitura caso você nunca tenha lido o conto:
“Você veste a camisa, passa um papel nas pontas dos seus sapatos e escuta, desta vez, o aviso do sino que parece vaguear pelos corredores da casa e fecha a porta. Você olha para o corredor; Aura anda com o sino na mão, inclina a cabeça para vê-lo, lhe diz que o café da manhã está pronto.”
Neste caso, Carlos Fuentes já define quem é o protagonista da ação. Ele é Felipe Montero, um jovem historiador. Então, todas as vezes que o narrador menciona “você”, ele, na verdade, está falando de Felipe. E ele apresenta toda a história de Felipe como se você, leitor, fosse esse rapaz. Como já disse no exemplo anterior, isso faz com que percebamos de maneira mais intensa os acontecimentos descritos. E não pense que o autor escolheu esta forma de narrativa aleatoriamente, ele tinha um propósito para isso. Como esse conto gira em torno de um mistério, é cheio de suspense, a narração em segunda pessoa nos transporta de maneira brilhante para dentro daquele universo misterioso, fazendo-nos sentir a atmosfera intrigante na qual o personagem se encontra de maneira bastante intensa.
• Nas conversas do nosso cotidiano, nas palestras, sermões, etc.
Você faz isso de maneira natural e nem percebe. Quando queremos dar um exemplo de uma situação, e queremos que a pessoa que está nos ouvindo se coloque no lugar do outro que vivenciou a experiência, seja lá quem esse outro for, nós usamos o recurso da narração em segunda pessoa. Vamos imaginar o seguinte diálogo do Joãozinho com a Mariazinha. Ela tem uma visão bem equivocada sobre a profissão de um professor e ele tentará mostrar isso a ela:
Mariazinha: Vamos ao cinema hoje?
Joãozinho: Acho que vamos ter que deixar pra próxima, porque hoje eu estou exausto. Vida de professor não é fácil não, amiga.
Mariazinha: Ah, Joãozinho! Para com isso, vai. Você está reclamando de barriga cheia. Todo mundo sabe que professor vive reclamando, mas tem férias duas vezes ao ano e só anda de “carrão” por aí.
Joãozinho: É mesmo, Mariazinha? Então imagine que você passou quatro anos da sua vida numa faculdade para conseguir a sua graduação em uma Licenciatura. Você estudou aquilo que gosta e está ansiosa para ensinar para seus alunos tudo aquilo que você aprendeu. Você consegue um emprego no sistema público, e começa a sua carreira toda animada, pensando em mil e uma maneiras de aplicar o seu conteúdo de maneira interessante e divertida. Porém, quando você chega na escola para dar aula, você se depara com salas com mais de quarenta alunos dentro de um cubículo, sem ventiladores, a maioria dos recursos que precisa para aplicar suas boas ideias não estão disponíveis na escola, e o seu salário é uma piada. Você tem que trabalhar durante o período que está na escola e fora dele, tendo que planejar aulas e corrigir provas. Então, para conseguir um salário decente, você consegue dobrar a sua carga semanal de trabalho. Mas, infelizmente, sua escola continua sem ventiladores, sem recursos. Você dobra o seu salário, mas também dobra a quantidade de trabalho dentro e fora da escola. Para ganhar um salário que não faz jus ao tanto de anos que você passou estudando na vida. Com o passar do tempo você perde a voz, perde o ânimo de ir trabalhar e adquire um stress enorme por conta de tudo isso. Como você se sentiria, Mariazinha? Ainda continuaria achando que professor reclama de barriga cheia?
Mariazinha: ...
Vocês perceberam que, no desabafo do Joãozinho para a Mariazinha, ele transporta toda a situação que aconteceu com ele, para ela? E isso foi possível usando a narração em segunda pessoa. Joãozinho a colocou no lugar dele.
Talvez você já tenha notado que, embora não gostemos de admitir, é um pouco difícil entendermos coisas pelas quais não passamos na vida. Contudo, se fazemos um esforço e nos imaginamos no lugar do outro, nos tornamos pessoas mais tolerantes e capazes de exercer a compreensão. Isso é o que chamamos de empatia, que segundo o dicionário do Google é a “capacidade de projetar a personalidade de alguém num objeto, de forma que este pareça como que impregnado dela”. É exatamente isso que a narrativa em segunda pessoa tem e faz de melhor, ela dá ao leitor a oportunidade de ser extremamente empático com o personagem a ele apresentado. Ela transporta a alma do personagem para dentro do próprio leitor.
Nossa, tia Helen, realmente, narrar uma história assim deve ser bem interessante! Mas, sejamos sinceros, não deve ser todo esse mar de rosas também, né? Tenho certeza que existem desvantagens ao escrever em segunda pessoa. Já pode ir falando quais são elas!
Já que você insiste, admito que existem algumas desvantagens, sim, meu caro. Mas vou listar também as vantagens para que você saiba que existem mais delas do que as desvantagens que podem surgir no meio do caminho.
As Vantagens
Provocar maior empatia do leitor para com o personagem
Como já demonstrado, isso se torna muito útil em histórias que são centradas mais nos pensamentos e emoções do personagem, na forma como ele percebe o mundo. Nesse caso, a narrativa te induzirá a julgar menos e a entender mais o porquê de determinadas ações.
A narrativa em segunda pessoa é sempre uma verdade
Quando uma história é narrada em primeira pessoa, nem sempre aquilo que o narrador te conta é verdadeiro. Como ele não é onisciente, ele apenas te apresentará a maneira como ele enxerga o mundo e as pessoas. Ele irá fazer as suposições dele, e você decidirá se acredita nele ou não. Pode também acontecer de o narrador estar não apenas narrando as suposições dele para você, mas, de fato, estar mentindo. Você não presenciou as situações. Você não estava na cena. Nada o impede de dizer a você que estava feliz com determinado acontecimento quando, na verdade, ele estava sentindo raiva. Já com a narrativa em segunda pessoa isso se torna impossível de acontecer, pois como o escritor está ditando a maneira como “você” sente, como “você” enxerga o mundo, tudo que acontece relacionado ao protagonista sempre será uma verdade, pois ninguém melhor do que “você” para saber as coisas que te acontecem. O personagem da história poderá até presumir e não ter certeza sobre muitas coisas, mas como ele é “você”, você sempre saberá se está mentindo, se não tem certeza de algo, se está levantando suposições. Por mais que “você” esteja equivocado sobre algo, “você” estará, por assim dizer, “sinceramente enganado”.
Evitar confusões em diálogos entre personagens do mesmo gênero
Uma das coisas que irrita um leitor é quando ele está lendo determinada cena que se passa entre pessoas do mesmo gênero e não sabe se o “ele/ela” escrito pelo autor foi direcionado ao personagem “A” ou ao personagem “B”. Isso acontece com frequência em histórias narradas em terceira pessoa, e então o escritor tem que usar de algumas artimanhas para fazer essa diferenciação. Na narrativa em segunda pessoa, suprimimos esse problema pelo simples fato de que o personagem principal não está sendo descrito na terceira pessoa, e sim na segunda, pois ele é “você”, e não “ele/ela”. Sendo assim, se você for escrever uma história na qual os personagens principais são do mesmo gênero, estando ela a abordar uma relação homoafetiva ou não, esse tipo de narração é uma boa pedida.
As Desvantagens
Visão limitada dos fatos
Assim como acontece numa narração em primeira pessoa, uma história narrada em segunda pessoa também possui uma visão limitada sobre as coisas que acontecem. Em certas histórias escritas em terceira pessoa o leitor consegue saber o que se passa em diversos núcleos da trama, estando o protagonista presente na cena, ou não. Isso não é possível na narrativa em segunda pessoa. Contudo, existe uma forma de driblarmos essa situação. Eu já acompanhei histórias muito boas, de excelente escrita e narradas em segunda pessoa, que alternavam os pontos de vista dos protagonistas.
Claro que, como já dito em outros artigos do nosso blog, não é de bom tom que um autor alterne os pontos de vista de uma história a todo o momento somente porque a forma com a qual ele decidiu escrever a história não lhe proporciona o privilégio de saber o que se passa, com tudo e todos, a todo o momento. Isso deixa a cabeça do leitor confusa, e ele poderá até mesmo confundir ou ter dúvidas sobre com quem os fatos narrados estão acontecendo. Mas se você souber usar com extremo cuidado o recurso da alternância, isso pode ser uma saída bem interessante para o problema.
Por exemplo, em determinada história que acompanho, a narrativa é feita em segunda pessoa, e os pontos de vistas alternam-se somente entre duas pessoas, que são as protagonistas da história. Essa alternância de pontos de vista ocorre apenas uma vez a cada capítulo, e as autoras deixaram bem claro para os leitores como ocorreria essa alternância. Então, sempre que ela ocorre, estamos todos cientes e não temos problemas quanto a isso. Mesmo assim, o conselho que deixo é, se você puder evitar uma possível alternância no mesmo capítulo, evite.Se puder escrever a história toda apenas sob um ponto de vista, faça.
Você irá perceber que nem toda história em segunda pessoa ficará boa com alternância de pontos de vista (esse recurso você usa apenas se estiver bastante seguro que aquilo é necessário. As pessoas não precisam saber de tudo sempre. Na vida real nós convivemos muito bem com esse fato), e que nem toda história que você deseja contar irá ficar boa com uma narrativa em segunda pessoa. Tudo irá depender das suas motivações, de como você quer construir a sua história e aonde você pretende chegar com ela. Acostumar-se a escrever e até mesmo ler nessa forma específica de narração leva tempo e treino. Portanto, o último conselho que a tia Helen deixa para vocês é: