Por: Carol Guimarães
Hello, hello, hello!
Há algum tempo eu vi no Ask da Liga alguém pedindo dicas de como escrever cenas de estupro, um assunto delicado, que pode acabar mudando toda a personalidade do seu personagem e o rumo da sua história. Resolvi atender ao pedido, visto que eu mesma fiquei com essa dúvida ao elaborar uma história.
A resposta? Depende. Depende de quem é o narrador, depende do tipo de história que você está escrevendo, depende de qual impressão você quer passar ao leitor. Eu não posso simplesmente lhe passar uma fórmula mágica, pois ela não existe. Cenas de estupro são variáveis, pois os personagens são variáveis.
O fato é que estupro é um tabu e pouco se fala sobre o assunto. Entretanto, eu vou colocar algumas situações aqui para tentar ajudar você, autor, da melhor maneira possível, a retratar uma situação dessas.
Mas antes de tudo, vamos esclarecer uma coisa:
Estupro - Ato de forçar alguém a ter relações sexuais contra a sua vontade, por meio de violência ou ameaça. = VIOLAÇÃO
("estupro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/estupro [consultado em 05-05-2014].)
Estrupo - Ruído, tropel, tumulto.
("estrupo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/estrupo [consultado em 05-05-2014].)
As duas palavras existem e são fáceis de confundir, mas agora você já sabe e não vai mais errar. Certo? Ok. A partir de agora eu não quero mais ninguém escrevendo que a personagem foi “estrupada”.
Depois de claro que o correto é estupro, não estrupo, que tal alguns dados? Aproveitando a pesquisa do Ipea recentemente e todo o bafafá que rolou por conta dela, vamos tentar desmistificar algumas coisas.
- Estima-se que, no Brasil, no mínimo 527 mil casos de estupro são consumados a cada ano. E dentre esses, apenas dez por cento são reportados à polícia.
Mas por que apenas dez por cento? Você me pergunta, abismado com um número tão baixo. Ora, se grande parte da população acredita que a vítima é culpada por ser vulgar, quem é que irá querer contar para alguém e ser ainda mais humilhado?
- Em relação ao total das notificações ocorridas em 2011, 88.5% das vítimas eram do sexo feminino, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade.
Reparem que esses dados são apenas dos casos relatados à polícia. Homens talvez tenham ainda mais dificuldade para mencionar esse tipo de coisa, afinal, criou-se na sociedade atual uma ideia de que apenas mulheres são estupradas, homens são homossexuais e não querem admitir, preferindo inventar uma história de estupro, ou então que eles são homens e todo homem gosta de sexo, e que a ideia de eles negarem isso a uma mulher é ridícula. Claro que não, né? E homossexuais ou não, homem ou mulher, jovem ou adulto, todos têm o direito de procurar a justiça e atendimento psicológico.
Outra coisa, meninas com menos de treze anos costumam se vestir vulgarmente? A grande maioria não, certo? Então é cabível dizer que a vítima pediu para ser estuprada usando roupas inapropriadas?
- No geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa e que a violência nasce dentro dos lares.
A fulana coloca uma roupa curta para ir a uma festa e depois de um pouquinho embriagada, decide ir para casa, passando por um beco escuro e sujo. Um sujeito mal encarado, feio, fedorento e com uma faca na mão, aparece e a estupra. Previsível? Clichê?
A Beltrana tem um tio lindo, cheiroso, que parece um príncipe aos olhos de todos, até mesmo dela. Até que esse tio a estupra e continua o fazendo até que ela se rebele. Por mais que pareça doentio, esse tio ainda a trata com carinho, porque ele a ama.
Qual dos dois casos nós vemos mais nas histórias? Um biscoito para quem disse o primeiro. Agora, qual dos dois casos acontece mais no mundo real? Um biscoito de chocolate com sorvete e petit gâteau para quem respondeu o segundo. Por incrível que pareça, o último caso é o mais comum de ocorrer. Tente surpreender o leitor, evite o beco escuro e o cara feio com a faca na mão.
Se você quiser mais dados como esses, no final do post há um link com as estatísticas do Ipea. É interessante dar uma olhada, pois grande parte dos resultados vai contra o senso comum.
Valendo lembrar também que, antes de 2009, estupro era categorizado apenas como um homem inserindo o pênis na vagina da vítima sem o seu consentimento, ou seja, todos os outros casos de violência sexual eram chamados de outra maneira e tinham outras penas, homens não podiam ser estuprados, mulheres não podiam ser agressoras, pênis inserido no ânus da mulher também não era considerado... Agora, desde 2009, estupro é categorizado como toda forma de violência sexual para qualquer fim libidinoso (finalidade de satisfazer o desejo sexual), incluindo a conjunção carnal (pênis introduzido na vagina). O crime pode ser cometido por qualquer forma e em qualquer delas será considerado crime hediondo, o tipo mais grave de crime.
Por que escrever uma cena de estupro?
Se você quer adicionar mais drama à sua história, ou se quer que seja o motivo do personagem sair em busca de vingança e iniciar a ação, sugiro fortemente que não o faça. Sério, saia desse post e vá procurar algum outro, não escreva a cena de estupro!
Abuso sexual é coisa séria. Pode mudar a personalidade do personagem inteira e até o rumo de sua história. Na verdade, muito provavelmente será o clímax.
O que você tem que entender é que estupro é um ato tão impactante que pode destruir a vida de uma pessoa, ela nunca mais será a mesma. Ela pode se recuperar? Pode, claro que sim. Há vários grupos de apoio que ajudam a vítima a se recuperar a ponto de ela viver uma vida saudável, feliz e normal. Mas ela nunca poderá dizer que é a mesma pessoa que costumava ser antes do abuso. E você terá que desenvolver essa mudança.
O personagem deverá passar por fases. Choque, negação, culpa — sim, algumas vítimas se culpam, por mais que não seja culpa delas ―, pensar, diversas vezes, no que elas poderiam ter feito para evitar — e aceitação, não necessariamente nessa ordem. Lembrando que isso varia de acordo com a idade, sexo e situação da personagem. Isso dá trabalho, e você não pode simplesmente ignorar e seguir a história como se nada tivesse mudado.
Além disso, a vítima, salvo algumas exceções, não gostará do abuso, nem irá agradecer o algoz pelo que ele fez com ela. A pessoa sentirá dor, vai odiar e temer o estuprador. A vítima pode até gozar, por fatores biológicos, mas muito provavelmente sentirá ainda mais nojo de si mesma por ter tido tal reação.
Mas não existem exceções, Carol?
Sim, existem. Mas saiba que são raras e você teria que trabalhar com um lado psicológico totalmente diferente. O cérebro humano tenta encontrar a melhor maneira de se defender diante de um choque desse tipo, e pode acabar criando a ilusão de afeto entre a vítima e o agressor. No entanto, lembre-se de que isso não é muito comum de acontecer e, se quiser escrever algo assim, saiba com o que está lidando e faça pesquisas.
Resumindo, só escreva sobre estupro se for realmente a sua intenção falar sobre o assunto, não para tapar buracos ou deixar as coisas mais emocionantes, ou para o seu vilão parecer mais cruel. Isso é um erro!
Mas agora que decidiu que quer mesmo escrever sobre o tema, que vai se dedicar no desenvolvimento do personagem a partir do clímax, você deve se perguntar: o que eu quero passar para o leitor? Eu quero que ele fique enojado com o ato vil? Eu quero que ele sinta o sofrimento da vítima? Eu quero que ele fique indignado com o autor do crime?
E ainda: qual o narrador da cena? A vítima ou o agressor? Talvez um narrador observador?
Essas perguntas são importantes, porque dependendo das suas respostas, a sua cena mudará.
Uma cena de estupro é caracterizada, principalmente, pelo seu teor dramático. Por isso eu aconselho que foque mais nos sentimentos dos personagens durante o ato, do que o próprio ato em si, até porque não costuma ser cheio de sangue ou com muita ação como seria o caso de um assassinato, por exemplo.
A beta estudante de psicologia, Senhorita Nada, e a beta formada em direito, Tina, gentilmente me ajudaram a entender o que ocorre na mente das pessoas nessas situações. Nos três casos seguintes você terá de usar a psicologia a seu favor. Dê as mãos a ela e não largue mais. Ela será sua amiga pelo resto de sua vida ou, pelo menos, até terminar de escrever.
A vítima
As vítimas, de modo geral, costumam demonstrar uma reação padrão. Elas se fecham a qualquer aproximação, não socializam, choram muito, acabam criando medos excessivos, ou se tornam pessoas mais agressivas, podem até começar a andar com acessórios para se defender, sprays de pimenta, facas, pistolas...
Se o seu narrador for a vítima, você terá que mostrar essas características no texto. Pergunte-se o que seu personagem faria se tivesse que andar sozinho pela cidade à noite, e depois que ele sofresse o abuso, como reagiria? Como se comportava, e como passa a se comportar com pessoas do mesmo sexo do agressor?
Durante o ato, procure focar no sofrimento e na humilhação que a vítima sente, também na raiva e frustração por tentar escapar e não conseguir. Talvez seu personagem fique em choque e apenas ore para que termine logo, ou até mesmo para que ele morra. Como eu disse anteriormente, pegue o seu amigo psicólogo, grude a traseira dele na cadeira ao seu lado e só o deixe sair depois que ele te ajudar a ver como o seu personagem reagiria em uma situação dessas.
O agressor
Se quem estiver contando a história for o agressor, a jornada será mais árdua do que se fosse a vítima, mas não menos interessante. Talvez até um pouquinho mais original.
Como as estatísticas mostraram, normalmente os criminosos são próximos da vítima, apresentam-se como amigos, frequentam os mesmos locais, são sujeitos que aparentemente têm uma boa relação com toda a família, tudo numa tentativa de liberar os seus ímpetos sexuais, algumas vezes de modo tão cruel que o crime acaba em morte. O que se pode ter ideia, devido a várias pesquisas e depoimentos, é que eles, os estupradores, demonstram ser pessoas tranquilas, calmas na frente de parentes, amigos, mas que no fundo, apenas estão calculando o momento ideal de praticar o ato do estupro (ou o ato libidinoso).
Porém, alguns desses estupradores já vêm com problemas psiquiátricos, têm transtornos compulsivos, psicopatias, enfim, quando o objeto do desejo é inalcançável, o estupro consequentemente se torna mais agressivo, e a tendência é matar a vítima. O desejo carnal de manter ato é quase que animal, irracional, transcende a questão saudável do sexo.
Durante o ato, foque na sensação de prazer que o estuprador sente, na euforia por ter finalmente conseguido realizar o que tanto desejava, talvez até na afeição que ele sente pela vítima, pois apesar de doentio, não é incomum de acontecer.
Narrador observador
Lembre-se de que o estupro é um ato de dominação, a fim de humilhar a vítima e minar sua moral. O abuso sexual é antigo e faz parte da história como, por exemplo, na Roma Antiga, onde a pederastia era comum. Era normal e tolerado que um jovem rapaz, ainda não considerado cidadão, que quisesse estudar, fosse abusado pelo mestre pedagogo, pois mostrava a relação de submissão que o jovem deveria ter com seu professor. É muito comum também, em tempos de Guerra, que os exércitos pratiquem o ato no inimigo, de forma a subjugá-lo, como aconteceu muito durante a Segunda Guerra Mundial, nos conflitos de vikings e na guerra de Troia.
Portanto, se a história for contada em terceira pessoa, tente mostrar os dois lados da moeda: como a vítima se sente e pensa (está em uma posição de submissão, mesmo que não queira), e como o estuprador se sente e pensa (está dominando a vítima).
Bom, espero ter ajudado e que tenham gostado do post! Se ainda tiver dúvidas, pesquise, peça ajuda a alguém que entenda do assunto, corra atrás e faça dessa cena uma coisa memorável para os seus leitores.
That’s all folks!